Vamos repensar a questão da virgindade? Hoje temos mais um texto do nosso colaborador doutor em filosofia, o Manoel Dionizio Neto que nos trouxe mais uma grande questão para ser levantada.
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Até a década de 1980, ainda era comum ouvir dizer que a virgindade da mulher era importante e até necessária. Muitos insistiam em casar com uma moça que fosse virgem, assim como muitas jovens não admitiam praticar o sexo antes de casar. Contraditoriamente, sabia-se que, mesmo nessa década, já existia uma certa cobrança para que ela não fosse virgem. Lembro aqui de uma publicação da Marta Suplicy, no Suplemento “Mulher” do jornal Folha de S. Paulo, quando a então psicóloga, sexóloga e escritora dizia do constrangimento de muitas mulheres que se viam cobradas para perder a virgindade, dizendo que, em certos ambientes, como o universitário, por exemplo, “coitadinha daquela que dissesse ainda ser virgem”, de forma que tinha passado a ser razão para que algumas (ou muitas) mentissem dizendo não serem mais virgens. Marta Suplicy, como era de se esperar de uma intelectual do porte dela, entendia que a cobrança, fosse para ser virgem ou não ser virgem, atentava contra o direito da mulher optar por continuar ou não sendo virgem, sem que para isso tivesse que atender os apelos de quem quer que fosse, pois o constrangimento em dizer ser ainda virgem era semelhante ao de sua época de juventude, quando as moças poderiam passar por uma situação constrangedora, se viessem a público o fato de já ter praticado sexo com alguém antes de casar.
Fico lembrando aqui que ouvia dizer que, na época da juventude do meu pai, no início do século XX, muitos homens deixariam de namorar com uma mulher se soubessem que ela já tinha sido beijada por outro homem. Daí a exigência, inclusive, de se procurar para casar uma moça que nunca tivesse tido nenhum tipo de contato íntimo, ainda que fosse apenas um beijo, com alguém. Lembrando, por um lado, dos constrangimentos referidos por Marta Suplicy, bem como do que ouvi dizer sobre a necessidade da virgindade da mulher até o casamento, mesmo quando já havia essa cobrança para deixar de ser virgem. Fico refletindo sobre as algumas questões relativas ao comportamento sexual das mulheres, mais especificamente, e das pessoas em geral ao longo da história humana. Não quero, e não vou fazer aqui uma discussão sobre os idos históricos da sexualidade humana. Certamente aqui não seria o lugar para isso, uma vez que pretendemos apenas manifestar algum entendimento a respeito da questão da virgindade, quando sabemos da importância que já teve historicamente para os homens, razão pela qual chegavam até às piores consequências quando descobriam, na noite de núpcias, que sua noiva não era mais virgem.
O que me faz pensar nesse momento é o paradoxo de certas exigências que se fazem contemporaneamente. Enquanto, por um lado, as moças se encontram constrangidas em assumir que são ainda virgens, por outro, encontram-se os homens ainda esperando casar com uma virgem, ou que apenas tenha sido virgem até conhecê-los. Ou seja, seria bastante compreensível que, durante o namoro e noivado, houvesse a primeira relação sexual dela com ele, mas não que quisesse casar com uma moça que já tivesse praticado o sexo com outro homem antes dele. E penso: há alguma diferença entre não querer namorar com uma moça que já namorou com outro, havendo assim a possibilidade de já ter sido beijada por outro, e admitir casar com uma moça que tenha praticado sexo com outro? Se formos buscar as razões postas para justificar uma coisa e a outra, é possível afirmar não haver diferença. Em qualquer dos casos, trata-se da rejeição da mulher que, de algum modo, tenha se relacionado amorosamente com outro homem. Ou seja: será que não há de se pensar aqui em termos de uso que tenha sido feito de um objeto que queria somente para si, mesmo que esse uso possa ter sido diferente, de forma mais intensa ou não?
Certamente não podemos pura e simplesmente simplificar a coisa assim. Todavia, a associação entre a mulher e um objeto de prazer não pode ser descartada. Por outro lado, sabemos que, para que chegasse a essa condição de objeto sexual, houve todo um percurso histórico de que também não vamos tratar aqui, mas que não pode ser por nós ignorado. Chamo a atenção apenas para a descoberta da participação do homem na fecundação, significando assim interferência dele na reprodução físico-biológica da espécie humana. Trata-se, pois, de uma descoberta que está associada à agropecuária. Isto significa dizer que a fixação do homem, no momento em que ele deixa de ser nômade para cuidar da agricultura e dos rebanhos mediante a domesticação dos animais, permitiu o conhecimento de que as relações sexuais entre um homem e uma mulher seriam necessárias para que os bebês pudessem nascer. Mas também não podemos esquecer que essa fixação do homem no campo como agricultor e como criador de rebanhos se fez com o surgimento da propriedade privada, ao tempo em que esta passou a ser, logo depois, referência para se pensar a mulher como uma das propriedades, de modo que deveria se buscar meios que garantissem o reconhecimento da paternidade.
A associação possível entre a mulher e a propriedade do homem, seu pai ou marido, poderia ter deixado de existir com o advento do liberalismo, que teve como um dos seus princípios a defesa de todas as formas de propriedades, estando entre estas o próprio corpo. Mas, infelizmente, para a concepção patriarcal e machista, antes de ser dona de seu próprio corpo, a mulher pertencia ao homem.Por isso, em um relacionamento conjugal, que nem sempre se tratava de um relacionamento amoroso propriamente dito, o corpo da mulher teria que continuar pertencendo mais a ele do que a ela, uma vez que, sendo ela propriedade dele, ela não poderia ter domínio total ou absoluto do seu próprio corpo. A ideia de objeto sexual continua existindo aí. Por outro lado, o reconhecimento da igualdade entre os sexos com o advento do racionalismo cartesiano, que passou a considerar a significação do sujeito a partir da capacidade de pensar com igualdade, presente em todos os seres humanos, muito contribuiu para que a mulher entrasse definitivamente em um processo de libertação. Por isso, hoje, em pleno século XXI, podemos acompanhar as mais diferentes conquistas da mulher, de modo que pode nos espantar a afirmação de que a virgindade feminina ainda se faça necessária. E aí pergunto: será que ainda continuamos com situações paradoxais como as da década de 1980?Voltamos assim aos paradoxos antes referidos, tanto para lembrar que, nos anos de 1980, a mulher estava caminhando a longos passos em direção à sua emancipação, como também para dizer que, infelizmente, ainda padecia de certos caprichos de uma sociedade patriarcal.
Tratando-se dos avanços em termos de liberação sexual que alcançou muito espaço com a revolução dos costumes da década de 1960, podemos falar dos paradoxos, quando os homens encontravam-se iludidos com os ensinamentos de uma sociedade machistas, enquanto as mulheres passavam a impor novas formas de comportamento. Assim, enquanto eu, por exemplo, ficava ouvindo que a mulher para casar teria que ser virgem, mesmo que a virgindade dela só durasse até se envolver amorosamente com aquele com quem pretendia casar, por outro lado, pesquisas realizadas na França e nos Estados Unidos apontavam para uma nova forma de lidar com o sexo antes do casamento, de modo que ia ficando cada vez mais difícil encontrar uma jovem solteira esperando para perder sua virgindade depois do matrimônio. Segundo a pesquisa realizada pelo Dr. Pierre Solignac e Anne Serrero, publicada em 1980 sob o título A vida sexual e amorosa das francesas, menos de um por cento das mulheres casadas entre 18 e 25 anos tinham perdido a virgindade na noite de núpcias, sendo que 69% dessas mulheres tinham perdido a virgindade com um homem que não era seu marido. Por essa mesma época, pesquisas nos Estados Unidos davam conta de que menos de 20% das mulheres casavam virgens.
Tomando como referências essas estatísticas, fico pensando por que, numa pesquisa realizada por volta de 2005 numa universidade do Rio de Janeiro, segundo Regina Navarro Lins, 36% das jovens solteiras com a idade de 20 anos declararam-se virgens, mesmo 50% delas afirmando não quererem permanecer virgens até o casamento. Fico pensando assim porque, depois de tanta mudança de comportamento admitida entre os anos de 1980 e os anos 2000, parecia-me ser muito difícil encontrar uma moça com 20 anos ainda virgem; mas fico pensando ainda mais assim, quando questiono, há muito tempo, por que os homens, seja em décadas passadas ou ainda hoje, alimentam essa fantasia machista de casar com uma virgem. E eu perguntava: será que estamos novamente diante de um paradoxo? Parece que sim. Ao mesmo tempo que sabemos ainda existir homens alimentando essa ilusão, sabemos também que a virgindade feminina praticamente desapareceu como temática das conversas entre os homens. De quantos ouvimos hoje a afirmação de que procuram uma virgem para casar, ou que não casarão com uma moça que tenha perdido a virgindade com outro? Do mesmo modo que, na década de 1980 era bastante normal namorar com uma moça que já tivesse sido beijada por outro, hoje parece bastante normal que se namore ou case com uma moça que tenha tido experiência sexual com outro. E mais do que isso, tem sido cada vez mais comum os namorados terem uma vida sexual efetiva, não fazendo diferença dos que vivem em um relacionamento conjugal, seja este formalizado ou não.
Durante a minha adolescência e juventude, entre os anos de 1970 e 1980, muito pensei sobre o que poderia significar essa necessidade de preservação da virgindade por parte da mulher. Convivendo num ambiente familiar bastante conservador, mas também convivendo em meio às pessoas que defendiam valores de uma cultura machista, fosse em Arapiraca-AL ou mesmo em Recife-PE, onde morava ou onde estudava, ficava muito na minha introspecção pensando sobre o que tanto se pensava sobre o que deveria ser certo e errado no comportamento sexual das pessoas, incluindo-se neste a necessidade de ser virgem a jovem para o casamento. Para mim, era bastante difícil entender a importância dada a uma relação sexual com uma virgem. E o que sempre pensei sobre isso é que não deve ser tão diferente ter uma relação sexual com uma mulher que nunca se relacionou sexualmente e ter relação sexual com uma mulher sexualmente experiente. Para quem ainda não teve relação sexual com nenhuma mulher, certamente seria melhor ter a sua primeira relação com uma mulher com a experiência que ele não teve. Todavia, o jovem, desde cedo, era orientado para recusar a prática sexual com uma mulher não virgem, se tivesse intenção de com ela casar, mesmo sendo ele sexualmente inexperiente. Para resolver “esse problema”, havia todo um incentivo para que ele procurasse junto a prostitutas, ou com moças com quem não queria casar, a sua iniciação sexual. Enquanto isso, a mulher que não tinha nada para ensinar ao homem, mas apenas aprender com ele, teria que ir para o casamento com a sua virgindade, ou, no máximo, ter uma relação sexual com o namorado ou noivo, se tivesse a certeza de que com ele casaria. Felizmente, graças à “certezas” de muitas jovens, hoje, mesmo em famílias mais conservadoras, marcadas pela formação de uma cultura machista e, portanto, patriarcal, cada vez se “ignora” mais o fato de que a moça não é virgem ou que pratica regulamente o sexo com o seu namorado ou noivo.
Ficam, então, as perguntas: Por que é possível, para o homem, a necessidade de a mulher ser virgem, quando não há essa necessidade em relação à mulher? Ou seja: por que somente é necessário para o homem ter relações com uma mulher virgem, quando não é necessário para a mulher que ele seja sexualmente inexperiente? Qual o prazer que se pode ter numa relação sexual com uma mulher virgem que não poderia ter se ela já tivesse perdido sua virgindade com outro? Digamos que esse prazer existisse. E daí, o homem teria que ficar se casando e, logo depois, se separando, para voltar a ter prazer no sexo, uma vez que, casando com uma virgem, depois da sua primeira relação sexual com ela, deixaria de ter prazer em sua vida sexual com a esposa? O que faz ser mais prazeroso numa relação sexual com uma virgem: o sangue, que poderá haver ou não, com a ruptura do hímen, que, por sua vez, poderá ocorrer ou não? O que, então, será mais prazeroso numa relação sexual: o fato de ser o primeiro, a certeza de que foi possível manchar os lençóis de sangue, ou todo envolvimento erótico que conduzirá os dois ao êxtase em uma relação sexual? O que, de fato, se deseja ou se pode desejar em uma mulher? Trata-se, então, de fazer da sua relação sexual uma relação sadomasoquista? Qual o tesão que se pode ter em saber que a mulher sangrou numa relação sexual? E, digamos que isso seja possível, trata-se, então, de descartá-la, sabendo que não sangrará numa próxima relação?
Por fim, gostaria de chamar a atenção aqui para a sabedoria feminina. A mulher, depois de passar por todas as formas de repressão sexual, foi capaz de perceber o que pode ser mais prazeroso no sexo, não buscando nas relações sexuais um prazer supérfluo, criado e alimentado pela fantasia de ser a primeira. Hoje, ao contrário do que ocorria no passado, não só é difícil ou quase impossível a comprovação de que a mulher não é virgem em sua primeira relação sexual com ela, como também não há mais como ter o controle sobre a prole, de modo que possa dizer da impossibilidade de evitar filhos com outrem. Mas aqui nos defrontamos com mais um paradoxo: mesmo nostempos mais remotos, o fato de casar com uma virgem não impedia que ela, depois, tivesse filhos de outro homem, ficando para o marido apenas a “certeza”de que todos os filhos dela eram igualmente seus. Agora, podendo evitar o filho não desejado, é bem mais fácil para ela esconder suas relações com outro, independentemente de casar virgem ou não. Por que, então, teria ele a necessidade de exigir que ela seja virgem para o casamento, ou que ele tenha sido o primeiro com quem teve relação sexual? Poderá, sim, ser esse primeiro, sem que isso signifique ser o único. E não é a virgindade ou a ausência dela que vai determinar o que acontecerá depois na vida conjugal ou sexual do casal. Cabe somente a ela decidir sobre o que fazer dos seus sentimentos, tenha caso virgem ou não, tenha perdido a virgindade com o marido ou não.
Mas, se por um lado, sabemos dos avanços da mulher a caminho da sua libertação, também sabemos também do peso dos valores da cultura que ela ainda carrega. Valores esses que têm sido repassados de geração a geração, sempre demarcando a significação dos rituais impostos pelas diferentes crenças. A filha, que fica mais sob o controle familiar, segundo a tradição cultural que opta por uma forma de educar a mulher sob os moldes do certo e do errado culturalmente falando, acaba introjetando muito mais esses valores. Porém, conforme tem sido demonstrado historicamente, a mulher vai cada vez mais desconstruindo esses valores, por isso que é cada vez superada a fórmula do amar fundada na necessidade de submissão da mulher ao homem, afastando, cada vez mais, a possibilidade do sadomasoquismo das relações amorosas. Por isso creio que, continuando com essa força, a mulher poderá dizer ao mundo, em alto e bom som, que não poderá ser reduzida a um objeto de prazer para o homem, ao passo que mais se afirma como possibilidade de abertura para um prazer de qualidade muito superior, tanto no que diz respeito ao prazer dela quanto ao dele. Por isso, não se fazendo necessário inverter agora os papéis, é possível pôr fim a uma estranha necessidade masculina de valorizar, na mulher, uma membrana tão sem importância que, nela, no máximo, servirá para dizer que é uma pessoal sexualmente imatura, sendo a ausência dela a indicação de que a infância dessa mulher ficou para trás. Isto é: com a perda da virgindade, desaparece aquela membrana que, como diz Havelock Ellis, seja para o uso do corpo feminino ou para a beleza da mulher, “é uma parte totalmente insignificante”, que serviria, no máximo, para dizer que a mulher é ainda criança; daí o seu desaparecimento com a relação sexual dessa mulher poderia apenas indicar que ela já passou da sua fase infantil, sendo agora senhora de si mesma. Assim, a mulher sabe dizer cada vez mais, e melhor, o que deve ser procurado numa relação sexual com ela, de forma que nós, homens, aprendemos cada vez mais com ela o que é ser feliz numa relação amorosa. Certamente, essa felicidade tanto procurada se faz pela maturidade das relações, e não com o falso prazer de ser o primeiro, sem levar em conta os sentimentos recíprocos das partes que formam o casal.
Colaborador: MANOEL DIONIZIO NETO, professor de filosofia do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, com graduação em Filosofia na Universidade Federal de Pernambuco, Mestrado na Universidade Federal da Paraíba e Doutorado na Universidade Federal de São Carlos, autor de A presença do hedonismo e do pragmatismo na visão ética contemporânea, A utopia petista: socialismo com democracia, Filosofia da ciência, Filosofia da ciência II: a ciência e a gênese da matemática e Questões para a filosofia da educação e outros títulos, tendo organizado alguns livros e publicado diversos artigos e capítulos de livros. E-mail: dionizioneto@uol.com.br